Da Telern do Venha-Ver ao WhatsApp

“Meu filho, boa noite, como foi seu dia? Tá tudo em paz por aí?” Geralmente, assim começa uma das mensagens mais contagiantes que recebo de minha mãe quase diariamente, via WhatsApp (zap). No final de semana vai mais além, a gente conversa em audiovisual, o tempo que temos à disposição, gratuitamente. 

O zap pouco significa para quem cresceu na era digital, caracterizada pela comunicação interativa e ubíqua, por meio dos bate-papos nas mídias digitais. Para mamãe, todavia, que, até poucos anos atrás, andava quilômetros a pé na direção do telefone público (TELERN) mais próximo da sua casa, na esperança de falar com seus filhos ausentes, o zap tornou-se o meio de comunicação mais valioso da sua vida. 

Pelo zap, mamãe conseguiu trazer de volta, para bem pertinho dela, todos os seus filhos que há anos vivem espalhados pelo mundo, nos seus respectivos trabalhos. O zap é um meio sagrado para mamãe porque dentro dele estão todos os seus filhos, netos, genros, noras, irmãos e irmãs e todas as pessoas amigas que ela tem adicionado, ultimamente, na sua lista de contatos. A praça do zap é “sagrada” porque onde habita o “humano”, habita o sagrado. 

Daí a explicação da sua inquietação quando algum problema acontece na internet. Passar dois ou três dias sem comunicação via zap é tão estressante quanto a falta de gás para cozinhar o almoço, ou a falta de eletricidade para ver televisão, engomar roupa, etc. Ficar dias sem comunicação via zap significa ficar dias longe dos seus filhos, longe das pessoas que ela ama. 

O zap para mamãe deu assas para o seu simples celular, que antes era usado esporadicamente apenas para fazer e atender ligações. Antes, ela não podia telefonar regularmente por várias razões. Primeiro, porque a conta estourava; segundo, porque muitas vezes não tinha êxito na ligação, seja porque não tinha sinal no telefone para o qual ela ligava, ou porque estávamos trabalhando ou estudando no momento em que ela nos chamava. Complicava mais ainda quando ela queria ligar para fora do Brasil. Por exemplo, ela nunca conseguiu fazer uma ligação para mim, ficava, portanto, à espera da minha ligação, como, habitualmente, eu fazia no final do mês. 

Hoje, pelo zap, ela tem duas opções: a primeira, gravar sua mensagem nas suas horas livres, deitada na rede da varanda, sem se preocupar se vamos responder logo em seguida ou no final do expediente. A segunda opção, ela pode falar em tempo real com qualquer um dos seus filhos, o tempo que desejar, sem alterar um centavo na taxa mensal da internet. 

Se ela percebeu uma grande mudança com a evolução do celular convencional para o celular conectado no zap, o que ela diria se comparasse a comodidade do zap com o tempo da Telern, há menos de trinta anos? 

Cresci e vivi minha infância vendo a Telern do Venha-Ver como o lugar mais curioso do povoado, um espaço tão frequentado quanto o posto de saúde ou a bodega central do distrito Padre Cosme, hoje, cidade do Venha-Ver. Estudando no Venha-Ver, quase diariamente presenciava cenas diversas: mulheres felizes por terem conseguido falar com o esposo ou filho, após meses sem contato; muitas outras aflitas por não terem tido êxito na ligação; além daquelas que perdiam a esperança, depois de várias tentativas frustradas. 

Frequentemente, havia pesados conflitos dentro da cabine da Telern, quando, por exemplo, alguém passava muito tempo conversando ao telefone, roubando assim a esperança das demais telefonarem. Era compreensível uma mãe passar uma hora ao telefone, sobretudo, aquelas que tinham esposos e filhos morando em São Paulo. Depois de meses sem contato, falar com todos em poucos minutos era uma missão quase impossível. Esse clima tenso era causado porque havia apenas um telefone para atender a demanda de centenas de famílias do povoado e região. 

Quando eu era menino, acompanhava minha mãe. Saíamos cedo de casa, algumas vezes, passávamos de sete ao meio dia esperando o telefone desocupar para fazer a ligação, ou, como muitas mães faziam, esperavam que os filhos ligassem, de um orelhão, em São Paulo, para a Telern do Venha-Ver. Muitas vezes, voltávamos sem conseguir falar com ninguém. Frustração misturada com indignação e raiva eram os sentimentos que invadiam a alma de nossas mães, por voltarem para casa sem saber notícias dos seus filhos ou esposos espalhados pelo Brasil afora. 


Problema técnico era a outra péssima surpresa que frequentemente ouvia da telefonista. Talvez por causa da sobrecarga ou da limitação tecnológica da época, depois de horas esperando a vez de fazer a ligação, a telefonista gritava lá de dentro da cabine: “o telefone tá fora de área, pode demorar uma hora ou um dia pra voltar a funcionar”. Lembro que, mesmo depois do comunicado do “telefone fora de área”, mamãe ainda ficava ali, esperando o telefone voltar a funcionar. Ela só voltava para casa quando perdia toda a esperança de falar naquele dia com o seu filho. 

Hoje, ninguém mais depende de Telern, nem de orelhão. Todos os seus filhos têm os seus smartphones. Do ano passado para cá, mamãe passou do seu simples celular de atender e fazer ligações para um celular mais inteligente, onde ela pode, além de ligar da sua casa para qualquer pessoa, também pode utilizar o zap, e por meio dele, enviar áudios, imagens, vídeos. Ela pode se comunicar com os seus filhos, familiares e amigos a qualquer hora do dia, sem precisar pegar fila, com uma autonomia inimaginável até poucos anos atrás. Ela pode falar dez minutos, uma hora ou o dia todo. O tempo gasto falando com seus filhos em Natal, São Paulo, Estados Unidos, ou em qualquer lugar do mundo, não rouba o tempo de ninguém, como acontecia na Telern do Venha-Ver, nem, muito menos impede papai de se comunicar, pois até ele tem o seu celular, conectado na internet, com a mesma liberdade e autonomia para ligar e interagir com seus filhos, familiares e todas as pessoas que fazem parte do seu raio de contatos. 

Ter consciência da história nos faz entender e a valorizar mais a realidade da vida presente. Eu, por exemplo, nasci e cresci na zona rural, sem energia elétrica, sem telefone, sem televisão. Diariamente, sair de casa para estudar na vila mais próxima, além da alegria de aprender algo, era também uma entrada no mundo “mágico” da eletricidade, da televisão, da água gelada, do contato com o mundo novo. 

Por estar, atualmente, estudando a passagem da comunicação de massa para a autocomunicação digital, a primeira imagem revolucionária que vem na minha lembrança é a recente história da minha família, que, em poucos anos, fez a grande guinada comunicacional, saindo do mundo pré-eletricidade e pré-internet, para o atual mundo “onlife”, uma vida conectada 24h com as pessoas que amamos, em qualquer lugar do mundo. 

Aquilo que meus pais vivem, mesmo morando na zona rural, na mesma casa onde nasci, é, na minha percepção, uma era de verdadeira autonomia comunicativa, ou seja, hoje eles não dependem de nenhum sistema público, não precisam sair de casa, nem pegar fila, nem, muitos menos esperar o dia e a hora para falar com seus filhos, familiares e amigos. E ainda mais: eles não apenas escutam a nossa voz, eles nos veem, veem a casa, a rua, o bar ou a Igreja onde estamos. A distância pouco importa. Pode ser a poucos quilômetros de distância, ou no Sudeste do país, na Europa ou em qualquer lugar do mundo. Independente de onde conversamos, a sensação que temos quando nos comunicamos em video-áudio pelo zap é a de estarmos batendo-papo bem juntinhos, na varanda da nossa casa.

Por isso, sem fazer memória da história recente, vivida com muito sacrifício pelos nossos pais, e por muitos de nós, corremos o risco de ignorar os passos disruptivos das novas mídias, interpretando superficialmente a revolução emancipatória e libertadora que a comunicação via digital está proporcionando à maioria da humanidade. Desse modo, recordar o que ontem significou a Telern na vida de mamãe, e o que hoje significa o zap na sua vida, dá-nos elementos históricos substanciais para perceber o grande salto qualitativo, descentralizado e personalizado que as novas tecnologias de comunicação estão provocando na vida de mamãe e de todos nós.

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